Esta entrevista foi originalmente publicada na revista ICMCotidi@no nº 100, edição de janeiro/fevereiro/março de 2013
A história do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, está diretamente interligada à trajetória do professor Hildebrando Munhoz Rodrigues, docente do Departamento de Matemática Aplicada e Estatística. Pioneiro do Instituto, sua atuação se deu de forma ativa nas áreas de ensino, pesquisa e gestão, o que contribuiu para o desenvolvimento e a consolidação da Instituição e da área de equações diferenciais no Brasil. Defendeu a primeira dissertação de mestrado da USP e liderou a criação do grupo de equações diferenciais funcionais do ICMC. Foi chefe de departamento, coordenador da pós-graduação e diretor do Instituto, dentre outros cargos.
Neste ano, o professor Hildebrando foi homenageado no Summer Meeting on Differential Equations, por ocasião de seu aniversário de 70 anos. Ele concedeu a entrevista abaixo ao ICMCotidi@no, contando um pouco sobre sua vida e sua carreira.
Em que cidade nasceu? É casado, tem filhos ou netos?
Nasci em um sítio conhecido como Terra Seca que fica próximo a Neves Paulista, no interior de São Paulo. Sou casado com Maria Ivana da Silva Munhoz. Tenho um filho Daniel da Silva Munhoz e uma filha Cristina da Silva Munhoz.
Em que fase da sua vida surgiu seu interesse pela matemática?
Até a idade de cinco anos vivi no sítio onde nasci. Minha família mudou-se então para São José do Rio Preto. Fiz a escola primária no Grupo Escolar Cardeal Leme. Prestei um exame de admissão para estudar no Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, tendo passado em primeiro lugar. Nesse período eu tinha bom desempenho em todas as disciplinas, inclusive em Matemática, pois tinha bons professores. Meu interesse específico por Matemática surgiu quando fui fazer o Curso de Licenciatura em Matemática na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, atual UNESP. No segundo ano, em 1964, obtive uma bolsa de iniciação científica com orientação do professor Mario Tourasse Teixeira. Observem que a FAPESP começou a funcionar em 1962. Nos anos seguintes até 1966 tive como orientador o professor Nelson Onuchic. Com esses dois excelentes professores, tive uma boa formação básica em Matemática, que foi fundamental para os meus estudos de pós-graduação, mestrado e doutorado, e depois para os meus programas de pós-doutorado nos Estados Unidos. No ano de 1967 iniciei meus estudos de mestrado no Instituto de Pesquisas Matemáticas em São Paulo, com orientação dos professores Chaim Samuel Honig e José de Barros Neto. Em dezembro de 1967, fui contratado pela Escola de Engenharia de São Carlos como professor instrutor, e continuei meus estudos no programa de mestrado com a orientação do professor Nelson Onuchic. Na Brown University, em Providence, Rhode Island (EUA), tive como orientador o Prof. Jack K. Hale, um dos expoentes em Equações Diferenciais e Sistemas Dinâmicos. Os conhecimentos que adquiri com estes dois últimos professores foram fundamentais para que eu me tornasse um pesquisador autônomo nessas áreas. Procurei transmitir aos meus orientados esses ensinamentos, não somente em termos de conteúdo, mas também em termos de atitudes científicas.
Quais técnicas usa para incentivar os alunos no aprendizado de matemática? O que você faz para despertar o interesse dos alunos pela matemática?
Em primeiro lugar devo enfatizar que utilizo técnicas de ensino bem tradicionais, giz e lousa são meus principais instrumentos de trabalho. Tentarei descrever como atuo em um determinado curso de graduação, eis alguns itens que considero importantes nesse meu trabalho: Estabelecer normas claras de conduta dos alunos durante as aulas, manter um bom relacionamento com a classe e com cada aluno, apresentar aulas bem motivadas por problemas concretos e práticos e, finalmente, promover avaliações frequentes. Para o curso de Engenharia Aeronáutica. A primeira aula do semestre é iniciada com apresentações, apresento-me, conto um pouco sobre minha formação acadêmica: Licenciatura em Matemática, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Claro, hoje UNESP; Mestrado, na Escola de Engenharia de São Carlos (USP); Doutorado, no Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos; Pós-Doutorado, na Brown University, Providence, Rhode Island (EUA). Em seguida peço para cada aluno que se apresente falando seu nome e que diga um pouco de sua formação acadêmica e de que cidade é originário. Depois disso, apresento uma folha com o programa da disciplina, fazendo uma breve análise dos itens a serem estudados. Em uma outra folha apresento o calendários de avaliações e as normas de condutas esperadas dos alunos. Cada aula começa quando escrevo na parte esquerda da lousa a data e alguns itens que descrevem o programa resumido da mesma. Em seguida apresento um problema de motivação, de preferência aplicado. Somente então começo a desenvolver a teoria matemática que será utilizada para resolver aquele problema e alguns outros apresentados em seguida. Procuro apresentar a aula de maneira clara, escrevendo devagar na lousa e procurando interagir com a classe, apresentando ou respondendo perguntas sobre o assunto presente. Quando é o caso, conto também um pouco sobre a história dos matemáticos que contribuíram para desenvolver as teorias apresentadas. Costumo também copiar no final do curso um caderno de algum aluno ou aluna que tenha feito boas e completas anotações desde o início. Vários colegas experientes e também iniciantes fazem cópias dos mesmos para utilização quando forem ministrar a mesma disciplina. Procuro descobrir alunos que tiveram bom desempenho acadêmico em disciplinas anteriores e os estimulo a formarem grupos de estudos com outros alunos, marcando reuniões para discussões de problemas.
Como costuma avaliar os alunos?
Todo o meu sistema de avaliação é baseado em avaliações frequentes. Normalmente ele consta de cinco pequenas avaliações, provinhas, e três avaliações maiores, provas. As provinhas são mais frequentes e valem 2 pontos cada uma. Elas têm a duração de uma hora e constam de um ou dois problemas semelhantes aos que são discutidos em classe. As provas tem duração de duas horas e constam de problemas fáceis e de problemas mais difíceis. Nelas o aluno também tem de demonstrar algum teorema que foi demonstrado no curso. Este sistema diminui a ansiedade do aluno durante a prova. Entre as provinhas há uma que é substitutiva para outra que o aluno tenha perdido por alguma razão. Também há uma prova substitutiva para as provas com o mesmo objetivo. Como hoje temos listas de presença com fotos dos alunos, durante a realização de cada prova, vou procurando memorizar o nome de cada aluno. Assim, depois de algumas avaliações, já posso conhecer quase todos da classe pelos seus nomes. Este fato facilita muito meu relacionamento com toda a classe. Como em geral as classes são numerosas eu elaboro quatro provas diferentes, mas equivalentes em dificuldades. As folhas de questões são apresentadas em quatro cores diferentes: branco, verde, amarelo e cor-de-rosa. Assim durante a prova cada aluno não terá nenhum vizinho mais próximo com a mesma cor. Isto evita a comunicação dos mesmos durante a prova. Também não são autorizados celulares sobre as carteiras. No início do semestre procuro analisar o histórico escolar de todos os alunos que estão fora do perfil. Com isso posso planejar meu curso de maneira que haja um melhor aproveitamento não só dos bons alunos, mas também daqueles que trazem deficiências de formação anteriores. Como conclusão, devo enfatizar que o índice de aprovações em cada disciplina que ministro é relativamente alto, devido em parte ao meu sistema de avaliações.
A que o senhor credita ser um professor admirado e respeitado no campus da USP de São Carlos?
Temos excelentes professores no nosso Instituto. Tivemos uma escola de formação liderada principalmente pelos professores Gilberto Loibel, Nelson Onuchic e Lourdes de La Rosa Onuchic, que sempre deram muita importância às disciplinas de graduação. Procurei utilizar e aprimorar esses ensinamentos. Em breve devo completar 45 anos de serviço na USP. Isto significa que já dei aulas e contribui na formação de mais de quatro mil alunos. Já estou passando de mais de 50 alunos que oriento nos níveis de iniciação científica, mestrado e doutorado. Já publiquei mais de 40 artigos científicos. Fui chefe do Departamento de Matemática, diretor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, (ambos durante 4 anos) e coordenador da Pós-Graduação. Assim sendo, grande parte da minha vida foi dedicada ao ensino, à pesquisa e à administração do ICMC na Universidade de São Paulo.
Como coordena seu programa de iniciação científica? Quais as vantagens de fazer com que alunos de graduação e de pós interajam?
Desde o início das minhas atividades nessa área procurei seguir em parte o sistema do meu ex-orientador professor Nelson Onuchic. Procuro sempre trabalhar com grupos de alunos bem selecionados das várias áreas do campus. Praticamente todos tem média de pelo menos oito. Durante os trabalhos mantenho juntos alunos mais adiantados, alguns que já estão na pós-graduação, outros veteranos na iniciação científica e alunos iniciantes. Os seminários são baseados principalmente nos livros Principles of Mathematical Analysis de Walter Rudin e A Short Introduction to Perturbation Theory for Linear Operators de Tosio Kato. Os seminários são apresentados em inglês alternadamente pelos alunos. Há também seminários especiais para resolução de problemas. Muitos dos meus alunos de programas anteriores foram selecionados pela École Polytechnique, em Paris, na França para um programa de duplo diploma. Quando um novo aluno adere ao programa deixo claro que nosso objetivo principal é dar uma formação básica em Matemática profunda. Mas a oportunidade de ir à França é um subproduto. Como no último ano houve uma grande procura de alunos interessados no programa, tenho agora como colaborador o professor Marcio Fuzeto Gameiro que está coordenando um grupo. Já estamos com pelo menos 15 alunos que são distribuídos em três grupos de quatro ou cinco. Atualmente conto com a colaboração de Matheus Cheque Bortolan, que esteve neste programa desde o primeiro ano de graduação, foi meu aluno de mestrado e agora está no programa de pós-doutorado e com Guilherme Afonso Mazanti, que passou pelo meu programa, estudou e ganhou um prêmio na École Polytechnique na França, e agora é meu aluno de doutorado. Estes alunos servem como modelos para os mais novos.
Como se sente pelo fato de sua dissertação de mestrado ter sido a primeira defendida na USP de São Carlos?
Meu mestrado foi orientado pelo professor Nelson Onuchic. Defendi minha dissertação em 1970, nela abordei como tema Invariância para Sistemas não Autônomos de Equações Diferenciais com Retardamento e Aplicações. O fato de ter sido o primeiro título de pós-graduação na nova estrutura estabelecida pela USP depois de 1969 não é tão importante para mim. O mais importante é o fato de ter sido um trabalho de excelente nível em uma área que foi introduzida no Brasil pelo meu orientador professor Nelson Onuchic. Os modelos que envolvem equações com retardamento tem muita aplicabilidade em diversas áreas, como biologia, física e engenharia.
Hildebrando na cerimônia de colação de grau da graduação, em 1966
Quais são suas principais contribuições em pesquisa na área de Equações Diferenciais e Sistemas Dinâmicos Não Lineares?
Em geral minhas linhas de pesquisa e minhas publicações giraram em torno dos seguintes assuntos: Estabilidade; Princípios de Invariância; Dicotomias Exponenciais e Polinômio-Expoenciais; Bifurcação e Simetria; Oscilações Não Lineares; Linearização em Dimensão Infinita; Sincronização de Sistemas Contínuos e Discretos; Sistemas Caóticos; Teoria Espectral; e Aplicações a Equações Diferenciais Ordinárias, Parciais e Funcionais. Para mim, é difícil dizer quais foram minhas maiores contribuições, pois cada trabalho tem sua própria história. Gosto e tenho orgulho de cada um deles. Pelo fato de a linha de Sincronização ter relações mais próximas à aplicações práticas, os trabalhos nessa linha têm tido mais citações. A linha de Linearização em Dimensão Infinita envolve trabalhos fundamentais para a teoria de Sistemas Dinâmicos em Dimensão Infinita, mas como nossos trabalhos envolvem cálculos com muitas dificuldades técnicas, acredito que ainda levará um bom tempo para que a comunidade matemática valorize e reconheça a profundidade dos mesmos.
Como se deu a formação do grupo de pesquisa em Sistemas Dinâmicos Não Lineares no ICMC?
H: Podemos dizer que, essencialmente, a formação do grupo de Sistemas Dinâmicos Não Lineares deveu-se à vinda do professor Nelson Onuchic para São Carlos. Ele formou uma escola da qual eu fui um dos primeiros participantes. Acredito que ele foi o iniciador dos estudos sobre Equações Diferenciais com Retardamento no Brasil. Minha dissertação de Mestrado, Invariância para Sistemas não Autônomos de Equações Diferencias com Retardamento e Aplicações, foi um dos primeiros trabalhos de pesquisa nessa linha.
Quais contribuições foram possíveis trazer de suas experiências no exterior?
No período que passei em Providence, na Brown University, além de ter a oportunidade de trabalhar em problemas de pesquisa com o professor Jack K. Hale, pude interagir com matemáticos excelentes, como John Mallet-Paret, Shi-Nee Chow, Konstantin Dafermos, etc. No período que passei em Atlanta, GeorgiaTech (EUA), continuei trabalhando com o professor Jack K. Hale, interagindo também com Shi-Nee Chow, Yinfei-Yi, Valentin Affraimovich, Konstantin Mischaikow, etc. Nesses dois períodos fui adquirindo mais maturidade em trabalhar em problemas de pesquisa, podendo em seguida ir abrindo meus próprios caminhos e iniciar minha atividade de orientação de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado. Minha cooperação científica com pesquisadores estrangeiros de muito bom nível, como Valentin Affraimovich, Joan Solà-Morales, Jianhong Wu, Peter Kloeden, etc., também foi importante para a geração de publicações expressivas.
Qual é a sua filosofia de trabalho na área de gestão, e como ela contribuiu para o desenvolvimento do Instituto?
Fui coordenador da pós-graduação do nosso Instituto. Em 1982, propus a criação do Programa de Verão, quando iniciamos a realização de reuniões científicas em Equações Diferenciais. Coordenei a reestruturação dos programas de mestrado e doutorado em Matemática. Fui também o primeiro coordenador de área do programa de pós-graduação em Matemática. Fui chefe do Departamento de Matemática durante quatro anos. Neste período, coordenei uma reestruturação das disciplinas básicas de Matemática para todos os cursos do nosso campus. Fui Diretor do nosso Instituto durante quatro anos. Procurei iniciar uma gestão mais participativa, identificando vocações de nossas lideranças científicas e estimulando a elaboração de projetos para melhoria da infraestrutura da nossa instituição. Aproveitamos programas da USP, FAPESP, CNPq e CAPES. Fizemos uma reestruturação geral das nossas áreas administrativa, financeira, acadêmica e também da biblioteca. Propus a criação do Workshop de Interação de Competências (WIC), que tem tido um papel importante no planejamento estratégico do ICMC. Como representante no Conselho do Campus, fui a primeira pessoa que propôs a criação de um segundo campus da USP em São Carlos. Como membro de uma comissão desse Conselho, liderei a elaboração de um projeto para o fechamento e melhoria da segurança do nosso campus. Durante minha gestão, recebi um pedido do professor Edson dos Santos Moreira, que na época era chefe do Departamento de Computação, solicitando que no nome do nosso Instituto, que era Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos, fosse acrescentado a palavra Computação. Este foi o tema mais polêmico tratado pela Congregação. As discussões durante as muitas reuniões prolongaram-se por mais de um ano. Finalmente, foi aprovada a mudança para Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, tendo em seguida a homologação pelo Conselho Universitário da USP. Vejo hoje que essa decisão foi muito importante para o crescimento e reconhecimento da nossa instituição. Outro projeto muito importante que elaboramos e executamos foi o de melhoria das salas de aula e dos laboratórios de pesquisa, que culminou com a construção dos blocos 1 e 5. Isso foi fundamental para a implantação dos novos cursos, que foram criados em gestões posteriores.
Hildebrando durante a cerimônia de posse como diretor do ICMC
Por que, na ocasião da divisão do Departamento de Matemática (SMA) e Departamento de Matemática Aplicada e Estatística (SME), o senhor optou por mudar para o segundo?
Quando os departamentos de Matemática e de Computação contrataram muitos novos professores, devido à criação de novos cursos, houve a iniciativa de um grupo formado por parte de professores do Departamento de Matemática e parte do Departamento de Computação, liderado principalmente pelo professor José Alberto Cuminato, para a criação do SME. Um dos requisitos para essa criação seria que pelos menos três professores titulares aderissem a essa iniciativa. Eu assumi o compromisso de juntar-me a esse grupo para viabilizar a criação do SME. Cumpri meu compromisso, juntamente com o professor Plácido Zoega Táboas. Devo, entretanto, ressaltar que minha atuação científica e acadêmica tem mais destaque na área de Matemática que na área de Matemática Aplicada.
O senhor possui algum hobbie ou preferência cultural/artística?
Sempre procurei dar bastante ênfase a atividades esportivas. Joguei futebol durante muitos anos, chegando quase a ser profissional. Na parte de atletismo, fui durante um período corredor de velocidade, e mais tarde de corredor de fundo. Fui atleta da equipe de Rio Claro quando lá estudava e depois da equipe COSCA (Corredores de São Carlos), tendo inclusive participado de várias maratonas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em geral gosto de música principalmente clássica, jazz, blues e soft rock. Gosto também de alguns tipos de música brasileira.
O professor foi campeão amador de futebol com o Torino Brasileiro Atlético Clube
Texto e foto: Davi Pastrelo – Assessoria de Comunicação do ICMC